sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Minhas Armas

"Dia de trevas e de escuridão, dia de nuvens e de negrume! Diante dele um fogo consome, e atrás dele uma chama abrasa; a terra diante dele é como o jardim do Édem mas atrás dele um desolado deserto; sim, nada lhe escapa."

(Livro de Joel 2, 2-3)



















Com os olhos em brasa e o coração já em chamas
Na mão uma adaga na outra uma lança
Perscruta o nome que na noite tu chamas
Senão o cão ladra e tão logo te avança.

"A sua aparência é como a de cavalos; e como cavaleiros, assim correm"
Tenho milhares de soldados armados a postos para atacarem
Se não foge, mulheres, crianças, animais, enfim, todos morrem
E mil cairão ao seu lado, e tu é um deles, ninguém te socorre.

Entre espectros e outros vultos nauseabundos
Entre fantasmas e espantalhos caminhando nos campos
Cortam as almas, afiam as navalhas a cada segundo
Vai sentir um espasmo com a lâmina a tocar o seu flanco.

Age maquinalmente à presença de todos. É o hierofante.
Sua voz tem ruído de máquinas a trabalharem incessantemente
Não cede aos clamores dos tolos. Imperativo. Digladiante.
Age na mente dos outros como a esculpir o maior diamante.

Não sei de que umbrais, infernos, vieram sorrateiros
E muito menos em que almas feridas armaram trincheiras
Tenho muita bala pra matar esses cães traiçoeiros
E munição está sobrando no alforge e na minha algibeira.

Mais sanguinário que um pirata Somali em mar aberto
Mata mais que um hipopótamo faminto num lago lodoso
Come suas vísceras como um animal ferido em pleno deserto
E depois ainda encomenda sua alma pra um lugar tenebroso.

Porque de todas as iguarias ainda prefiro sua carne
Vou dividi-la com lobos, abutres, hienas, cachorros
Sua ausência será recebida sem dor nem alarde
Muito menos alguém pensará em prestar-lhe socorro.

Quanta coisa destrói, fere e mata
Vou tentar insculpir essa dor como um estigma num carvalho. Doença.
E já que tanta coisa destrói, fere e mata
Uma a mais, uma a menos não fará diferença.



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domingo, 26 de agosto de 2012

Nossas Almas

"There is part of me that's always true, always, not all good things come to an end... Now it is only a chosen few." (Costelo)


Existem almas inquietas
Dessas que não param em casa
Percorrem ruas desertas
Não voam. Não pairam. Sem asas.

E não tem anjos nas ruas
Tem loucuras tonturas e loucos
A noite em claro às escuras
Momentos felizes são poucos.

Faz falta uma brisa gentil
A invadir refrescante a janela
Faz falta um afago sutil
Ou um trago de bebida com ela.

E nossas almas se encontram no sono
E só dentro uma das outras felizes
Dentro do beijo é que me abandono
Onde aplacam-se as cicatrizes.

E quem pode sondar o amor que há em nós?
Podem chamar de vão desvario
Mas se ao ouvir o som da sua voz
Mesmo imerso na dor eu sorrio.

Nossas almas não são como aquelas
Que procuram o que nunca terão
Que não ouvem o coração e a razão
E querem ser o que nunca serão.

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sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Sem Sombra

Dois pés caminham ao sol do meio-dia
E quando o sol a pino até a sombra esconde
É um ser estranho pisando o chão do mundo
É um cão perdido sem ter nem pra onde.

E é um mundo grande, longe o horizonte
Um caminho longo, e muito faz-de-conta
E vai contando os passos até chegar a ponte
Lá se vai o dia, logo a lua aponta.

E eu sou o meio-tempo entre os minutos e o instante
Sou o contratempo de muitos e nada vacilante
Sou a sobra das horas e agora bem mais do que antes
Jamais serás o de outrora, é tempo perdido, é dilacerante.

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domingo, 12 de agosto de 2012

O Suicídio

(A imagem é obra do pintor teuto-francês Hans Hartung)


Cinquenta palavras devia ter dito
Antes do estampido do tiro no ouvido
Ou uma chamada pra um velho amigo
Que talvez tivesse me ouvido.

Algumas ações devia ter feito
Antes de puxar o gatilho no peito
Paixões, ilusões sem proveito
Tempo ao tempo. Momento. Defeito.

Se tivesse lembrado do seu riso, sua boca
Talvez não amarrado aquela corda com força
E assim pudesse falar com a voz rouca
Que toda a dedicação por ti ainda é pouca.

Acha covardia da minha parte comigo
E se pulasse de um prédio comigo?
Acha uma prova de amor, de um amigo
Ou pra você não lhe agrada o perigo?



Talvez desmoronasse sobre seus joelhos
Ao ver todo o sangue respingado no espelho
Ao ver a alma estilhaçada ao banheiro
E os dois pulsos cortados ao meio.

E todos os antibióticos não param a dor
A alma é gélida e o chão sem calor
O mundo é frio cheio de vil dissabor
E a morte tem um cheiro, um sabor.

E é sem sentido a falta de medo
E com a morte se encerra um segredo
E a vida sai de cena mais cedo
E num segundo o mundo escapa dos dedos.


* * *


"A partir do momento em que nada nos detém, deixamos de ser capazes de nos determos a nós próprios."


Émile Durkheim - Da obra homônima "O Suicídio"